Saturday, September 1, 2012

E ela conseguiu


O “prédio velho” ainda guarda a mesma forma de antes, creio eu. Eram três corpos, um deles apontando para o que considerávamos a entrada principal, que ficava na esquina da Rua do Ouro com a Tuiuti. O piso, embaixo desse corpo, era cimentado. O resto era terra batida. Era ali que se realizava a maior parte das solenidades escolares.

Naquele tempo, o professor Sérgio Correia, um dos símbolos do corpo docente, sempre escolhia uma aluna para declamar um poema. Um dia, uma colega cujo nome não vou revelar (se estiver lendo isto e quiser se apresentar, esteja à vontade), foi declamar o Pequenino Morto de Vicente de Carvalho, um poema longo e lúgubre. A maioria do pessoal não gostava de declamação e a atenção foi se dispersando por pensamentos mais alegres e agradáveis do que o tema da poesia.

De repente, um silêncio total: a declamadora tinha parado sem chegar ao fim. Tinha se esquecido do fim, tentou recomeçar, não conseguiu. Coberta de vergonha, fugiu às carreiras. Sérgio Correia, o grande Sérgio Correia, temido e odiado por sua ironia que muitos consideravam arrogância, respeitado por sua grande competência, levantou e foi atrás da declamadora, levando consigo uma das inspetoras de alunos.

Mesmo os que não gostavam da declamadora, achavam a poesia horrível e detestavam declamação em geral ficaram constrangidos. Muito ruim ver uma colega naquela situação.

O diretor, o famoso e temido Benedito Ferreira de Albuquerque, disse qualquer coisa e prosseguiu com a solenidade. Falou não me lembro quem e, logo em seguida, reapareceu a declamadora, olhar refulgente, escoltada pelo Sérgio Correia. Sérgio pediu a palavra, com voz firme, que a aluna ia declamar de novo. Silêncio na audiência. A colega deu dois passos, e recomeçou, ainda mais dramática que na primeira vez. Mas foi até o fim.

Acho que nunca ninguém foi tão aplaudido em uma solenidade quanto ela. Mesmo os que detestavam a declamação em geral e tinham detestado aquela poesia em particular, aplaudiram. A menina, emocionada agradeceu. Se fosse hoje, teria dado um merecido beijo no Sérgio.

Nunca soube exatamente o que tinha acontecido, mas parece que a inspetora de alunos encontrou a colega se debulhando em lágrimas num banheiro e a convenceu a conversar com o Sérgio, que a esperava na porta. O professor lhe deu uma injeção de coragem, persuadiu a moça de que ela ia conseguir na segunda tentativa, usando não sei de que argumentos.

E ela conseguiu.

Antes que me corrijam: o Sérgio não se assinava assim. Mas a norma ortográfica diz que os vivos são citados com o nome grafado como eles o usam, os mortos são citados com seu nome grafado como manda a ortografia vigente. Não vou cometer um erro de ortografia justamente no nome de nosso mestre.



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